"Não é preciso ter razão para cantar.
Para dar ao corpo uma manhã mais tarde, uma noite mais úmida.
Para decorar a letra tremida da carne.
Canta-se como uma telha solta do telhado, para se confessar de alegria.
Canta-se para não dizer tudo o que resta a dizer.
Para não ser dito o que não cabe, para que sejam lidas as labaredas.
Canta-se para confundir o pão e os insetos, as mãos e os seios,
os joelhos e ladeira da chuva.
Canta-se para não dormir durante a leitura.
Para roçar um vestido.
Para se privar do invisível.
Canta-se para não assentar o fundo, para retardar o caminho de regresso.
Canta-se para amar o que ainda nem nasceu, para interromper uma recordação triste.
Canta-se ainda que sem voz afinada, sem apetite.
Canta-se como uma poeira luminosa que sobe dos tapetes e que só é vista na infância ou quando se canta. Canta-se com o relógio de árvore. Com as ervas mastigadas pelas águas, pela extensão dos cabelos.
Canta-se pelo silêncio crespo do vinho, pelo vitral que há no vinho.
Canta-se pelas pedras onduladas das lâmpadas, para se apoiar na velhice das escadas.
Canta-se para ultrapassar a mágoa, para não ter motivos.
Canta-se para embaralhar a confiança e a carícia, desobedecer o ventre, injuriar com um beijo. Canta-se para arrumar os ombros, ajeitar a gola, subir na grama.
Canta-se para alimentar o que não é letra. Para despedir-se do começo.
Canta-se para viver no mesmo dia dos lábios.
Pela falta de equilíbrio dos segredos.
Canta-se para persistir quando era o momento de se apagar.
Canta-se para convencer o passado que ele ainda não imaginou o suficiente.
Canta-se para respirar mesmo sem ar.
Para respirar debaixo de um corpo."
(Fabrício Carpinejar)
(Fabrício Carpinejar)
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